10.9.16

O aparigraha de Davi Kopenawa


“Os objetos que fabricamos, e mais ainda os dos brancos, podem durar muito além do tempo que vivemos. Eles não se decompõem como as carnes de nosso corpo. Os humanos adoecem, envelhecem e morrem com facilidade. Já o metal dos facões, dos machados e das facas fica coberto de ferrugem e sujeira de cupim, mas não desaparece tão depressa! Assim é. As mercadorias não morrem. É por isso que não as juntamos durante nossa vida e nunca deixamos de dá-las a quem as pede. Se não as déssemos, continuariam existindo após nossa morte, mofando sozinhas, largadas no chão de nossas casas. Só serviriam para causar tristeza nos que nos sobrevivem e choram nossa morte. Sabemos que vamos morrer, por isso cedemos nossos bens sem dificuldade. Já que somos mortais, achamos feio agarrar-se demais aos objetos que podemos vir a ter. Não queremos morrer grudados a eles por avareza. Por isso eles nunca ficam muito tempo em nossas mãos! Nem bem acabamos de consegui-los e logo os damos a outros que, por sua vez, os querem. E assim as mercadorias se afastam de nós depressa e vão se perder nas lonjuras da floresta, carregadas pelos convidados de nossas festas reahu ou por outros visitantes. Desse modo, tudo está bem. Seguimos as palavras de nossos ancestrais, que nunca possuíram todos esses bens trazidos pelos brancos. 
 
Quando um xamã morre, seu fantasma não leva nenhuma das suas coisas para as costas do céu, mesmo que seja muito avarento! Os objetos que tinha fabricado ou conseguido por troca são abandonados na terra e só fazem atormentar os vivos, atiçando a saudade. Então dizemos que esses objetos estão órfãos e que nos causam pesar, porque estão marcados pelo toque do falecido. Por isso, se um de meus filhos ou minha mulher morressem, as coisas em que costumavam mexer guardariam o rastro de seus dedos. Eu teria de queimá-las chorando, para acabarem para sempre. Como eu disse, as mercadorias duram muito tempo, ao contrário dos humanos. Por isso devem ser destruídas quando morre o dono, mesmo que seus familiares precisem delas. Assim é. Nunca guardamos objetos que trazem a marca dos dedos de uma pessoa morta que os possuía!
Davi Kopenawa


Somos diferentes dos brancos e temos outro pensamento. Entre eles, quando morre um pai, seus filhos pensam, satisfeitos: ‘Vamos dividir as mercadorias e o dinheiro dele e ficar com tudo para nós!’ Os brancos não destroem os bens de seus defuntos, porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Eu não diria a meu filho: ‘Quando eu morrer, fique com os machados, as panelas e os facões que eu juntei!’ Digo-lhe apenas: ‘Quando e não estiver mais aqui, queime as minhas coisas e viva nesta floresta que deixo para você. Vá caçar e abrir roças nela, para alimentar seus filhos e netos. Só ela não vai morrer nunca!’ É verdade. Achamos ruim ficar com os pertences de um morto. Nos causa pesar. Nossos verdadeiros bens são as coisas da floresta: suas águas, seus peixes, sua caça, suas árvores e frutos. Não são as mercadorias! ...”

As pedras, a água, a terra, as montanhas, o céu e o sol nunca morrem, como também os xapiri. São seres que não podem ser destruídos e que dizemos parimi, eternos. O sopro de vida dos humanos, só contrário, é muito curto. Vivemos pouco tempo. Epidemias xawara, espíritos maléficos e feiticeiros inimigos nos devoram facilmente. Por isso pensamos em nossos próximos e nas pessoas de quem somos amigos. Pensamos que se eles morressem, iríamos nos arrepender de não termos sido generosos o bastante com eles. Dizemos a nós mesmos: ‘Hou! Por falta de sabedoria fui tão sovina! Não satisfiz seus pedidos e agora essa lembrança me entristece!’ E depois, sabendo que nós mesmos não vamos demorar a morrer, não queremos também deixar para trás objetos cuja visão só vai deixar os nossos aflitos.”


“... quando conseguimos miçangas com os brancos. Ficamos com elas muito pouco tempo antes de escaparem para longe de nós! Primeiro as repartimos entre o pessoal de casa. Depois, basta sermos convidados a uma festa reahu por nossos aliados do rio Toototobi para as trocarmos com eles por outros objetos. Em seguida o pessoas do Toototobi vai visitar os Weyuku thëri que vão levar nossas miçangas mais longe ainda, rio acima, para outros Xamathari das terras altas que são seus aliados. Elas acabam chegando assim até a gente do rio Siapa, como nossos facões! No final, elas terão viajado para bem longe de nós, acompanhadas de boas palavras a nosso respeito: ‘Awei! São gente generosa mesmo, são amigos! Eles são muito valentes, é por isso que demonstram tanta largueza!’¹ Quando os moradores dessas casas distantes ouvem essas belas palavras, logo pensam que seria bom abrir uma senda nova na floresta para vir visitar nossa casa e obter os bens que desejam de nossas mãos. Dão-lhe então o nome de ‘caminho de pessoas generosas’.”

1. Os Yanomami associam fortemente valentia, humor e generosidade. (Nota de Bruce Albert).


In: A queda do céu, Davi Kopenawa e Bruce Albert, Companhia das Letras

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