“Os
objetos que fabricamos, e mais ainda os dos brancos, podem durar
muito além do tempo que vivemos. Eles não se decompõem como as
carnes de nosso corpo. Os humanos adoecem, envelhecem e morrem com
facilidade. Já o metal dos facões, dos machados e das facas fica
coberto de ferrugem e sujeira de cupim, mas não desaparece tão
depressa! Assim é. As mercadorias não morrem. É por isso que não
as juntamos durante nossa vida e nunca deixamos de dá-las a quem as
pede. Se não as déssemos, continuariam existindo após nossa morte,
mofando sozinhas, largadas no chão de nossas casas. Só serviriam
para causar tristeza nos que nos sobrevivem e choram nossa morte.
Sabemos que vamos morrer, por isso cedemos nossos bens sem
dificuldade. Já que somos mortais, achamos feio agarrar-se demais
aos objetos que podemos vir a ter. Não queremos morrer grudados a
eles por avareza. Por isso eles nunca ficam muito tempo em nossas
mãos! Nem bem acabamos de consegui-los e logo os damos a outros que,
por sua vez, os querem. E assim as mercadorias se afastam de nós
depressa e vão se perder nas lonjuras da floresta, carregadas pelos
convidados de nossas festas reahu ou
por outros visitantes. Desse modo, tudo está bem. Seguimos as
palavras de nossos ancestrais, que nunca possuíram todos esses bens
trazidos pelos brancos.
Davi Kopenawa |
Somos diferentes dos brancos e temos outro pensamento. Entre eles, quando morre um pai, seus filhos pensam, satisfeitos: ‘Vamos dividir as mercadorias e o dinheiro dele e ficar com tudo para nós!’ Os brancos não destroem os bens de seus defuntos, porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Eu não diria a meu filho: ‘Quando eu morrer, fique com os machados, as panelas e os facões que eu juntei!’ Digo-lhe apenas: ‘Quando e não estiver mais aqui, queime as minhas coisas e viva nesta floresta que deixo para você. Vá caçar e abrir roças nela, para alimentar seus filhos e netos. Só ela não vai morrer nunca!’ É verdade. Achamos ruim ficar com os pertences de um morto. Nos causa pesar. Nossos verdadeiros bens são as coisas da floresta: suas águas, seus peixes, sua caça, suas árvores e frutos. Não são as mercadorias! ...”
“As pedras, a água, a terra, as montanhas, o céu e o sol nunca morrem, como também os xapiri. São seres que não podem ser destruídos e que dizemos parimi, eternos. O sopro de vida dos humanos, só contrário, é muito curto. Vivemos pouco tempo. Epidemias xawara, espíritos maléficos e feiticeiros inimigos nos devoram facilmente. Por isso pensamos em nossos próximos e nas pessoas de quem somos amigos. Pensamos que se eles morressem, iríamos nos arrepender de não termos sido generosos o bastante com eles. Dizemos a nós mesmos: ‘Hou! Por falta de sabedoria fui tão sovina! Não satisfiz seus pedidos e agora essa lembrança me entristece!’ E depois, sabendo que nós mesmos não vamos demorar a morrer, não queremos também deixar para trás objetos cuja visão só vai deixar os nossos aflitos.”
“... quando conseguimos miçangas com os brancos. Ficamos com elas muito pouco tempo antes de escaparem para longe de nós! Primeiro as repartimos entre o pessoal de casa. Depois, basta sermos convidados a uma festa reahu por nossos aliados do rio Toototobi para as trocarmos com eles por outros objetos. Em seguida o pessoas do Toototobi vai visitar os Weyuku thëri que vão levar nossas miçangas mais longe ainda, rio acima, para outros Xamathari das terras altas que são seus aliados. Elas acabam chegando assim até a gente do rio Siapa, como nossos facões! No final, elas terão viajado para bem longe de nós, acompanhadas de boas palavras a nosso respeito: ‘Awei! São gente generosa mesmo, são amigos! Eles são muito valentes, é por isso que demonstram tanta largueza!’¹ Quando os moradores dessas casas distantes ouvem essas belas palavras, logo pensam que seria bom abrir uma senda nova na floresta para vir visitar nossa casa e obter os bens que desejam de nossas mãos. Dão-lhe então o nome de ‘caminho de pessoas generosas’.”
1. Os Yanomami associam fortemente valentia, humor e generosidade. (Nota de Bruce Albert).
In: A queda do céu, Davi Kopenawa e Bruce Albert, Companhia das Letras